O Diário de Any Livic

Capítulo 01

A minha história começa como a maioria das histórias começam: quando a gente se dá conta de que precisamos fazer algo para mudar a nossa vida.
Foi assim que eu decidi que era hora de descobrir quem eu realmente era, o que eu queria ser e fazer, sem ficar mais dependendo da opinião dos outros e fazer o que todo mundo queria, menos eu.

Essa é a nossa casa em Bridgeport.
É uma casa pequena. Tão pequena, que a garagem foi transformada num quarto que eu divido com a minha irmã, Julie, e com a minha avó, Antonieta.

Aquele dia em específico começou diferente, bem mais conturbado que o normal. Acordar com os gritos da minha irmã não foi nada agradável.

Antonieta: Bom dia, minha querida neta!
Julie: Só se for pra você! Olha a minha cara! Olha o meu cabelo! Como você acha que eu vou pra escola desse jeito? Vou ser motivo de piada! Meu creme acabou e meu cabelo está parecendo uma crina de cavalo!!! Não tem como sair de casa assim, não tem!!!

Antonieta: Credo, foi só um bom dia, Julie...
Julie: Ai, não enche vó! Você fala demais!!! Tem muita gente nesse quarto, assim não dá! Eu PRECISO do meu espaço, ter um canto só meu. Vocês duas me dão no saco!
Antonieta: Nossa, calma!

Minha vó nem tinha terminado a frase, e a Julie já tinha saído do quarto e batido a porta.

Julie: Essa joça quebrou de novo, mãe?
Lourdes: De novo!!! Esse imprestável do seu pai nem pra consertar direito essa porcaria serve. Aliás, não tinha que ficar remendando esse lixo, tinha era que comprar uma máquina nova, como a da Manuella. Aquela sim tem um marido que presta, que se preocupa com a família!
Julie: Aproveita também e fala pra ele terminar o quarto lá de cima, porque eu ODEIO ter que passar pela lavanderia pra ir pra sala e ODEIO dividir o quarto com aquelas duas lá.
Lourdes: Pode deixar, minha filha, que se o imprestável do seu pai não atender nossas exigências, eu mesma chamo um cara pra fazer o serviço e ele se vira pra pagar depois.

Nós não tínhamos muito dinheiro. As coisas em Bridgeport não iam muito bem. Meu pai estava desempregado. Ele trabalhava em uma distribuidora de vídeo, mas com o aumento da pirataria, a empresa faliu. Todos os dias ele levantava cedo para procurar emprego e chegava em casa tarde da noite.
Mas minha mãe e minha irmã tinham mania de grandeza, e era muito difícil agradar o alto padrão de vida que elas queriam ter.
A Manuella era nossa vizinha. Minha mãe queria ter tudo o que ela tinha.

Any: Puxa, o dia começou bem, heim vó?
Antonieta: É, a Julie acordou com a macaca hoje.
Any: Só hoje? Ela acorda assim todo dia!

Minha vó dava risada, pra tentar amenizar as coisas.

Lourdes: Já vai tomar banho, filha?
Julie: Vou tentar, né? Se aquele chuveiro chinfrim funcionar... Não aguento mais tomar banho frio!
Any: Não vai lavar o seu prato?
Julie: Eu não! Lava você, se estiver te incomodando tanto! Você acha que eu vou ficar com a mão fedendo de resto de comida e estragada de detergente? O que vão pensar de mim na escola?
Lourdes: Se o seu pai não fosse o inútil que é, teria dinheiro pra pagar uma empregada.

Minha mãe não poupava esforços em falar mal do meu pai. Quem vê pensa que eles não se gostam, mas nem sempre foi assim. Houve uma época em que eles se davam bem, eram carinhosos, mas eu nem me lembro mais desses dias.

Lourdes: Você precisa parar de comer doce, se não vai ficar gorda e não vai conseguir arrumar marido rico pra casar.
Any: Ai, mãe para com isso!
Lourdes: Você acha que eu não estou falando sério?
Any: Não é isso. É que você liga pra cada coisa inútil... Eu nem tenho namorado. Muito menos penso em me casar tão cedo.
Lourdes: Minha filha, você acha que essa sua carinha lindinha e esse seu corpinho duram pra sempre? Você tem que fazer como a sua irmã: garanta o seu futuro!
Any: Como assim? O que a Julie andou aprontando?
Lourdes: Nada, não. Vai logo ou você vai se atrasar pra escola.

Antonieta: Pode deixar o prato em cima da bancada que eu lavo, Any.
Any: Obrigada, vó! Tô mesmo atrasada, mas a Julie domina totalmente o banheiro!!!

Minha vó cozinhava, limpava, lavava e cozinhava. Tudo porque a minha mãe ficava o dia todo no Spa. Ela ia lá, ficava hooooooraaaaas enchendo os ouvidos das esteticistas e na maioria das vezes nem fazia nada – mas ficava lá só para se sentir num ambiente glamuroso. Ninguém aguentava mais ela por lá, mas não tinham coragem de coloca-la pra fora.

Depois da escola fiquei sabendo algumas coisas que a Julie andou fazendo...

Julie: Ai, Miguel, o que você quer aqui, heim?
Miguel: Ué, vim falar com a sua irmã.
Julie: Ai ai, a Any, sempre ela! O que um pobre como você quer com a minha irmã? Você não se toca, não? Se bem que é bem coisa da Any ficar fazendo caridade para os pobres mesmo...

Miguel: Olha, se ela não está, eu posso voltar mais tarde.
Julie: Melhor nem voltar! Eu falo pra ela ir na sua casa, porque eu não quero pobre rondando a minha casa, porque pobreza pega!
Miguel: Ai, como você é estúpida!
Julie: Se bem que... Você é bom em matemática? Não suporto as aulas daquele gordo do Farias. Você bem que poderia fazer a tarefa dele pra mim, né?
Miguel: Como é que é?
Julie: Poderia me ajudar com a tarefa dele...
Miguel: Aaaaah boooom...

Antonieta: Ai que bonitinho os dois estudando...
Julie: Se o idiota do Miguel não tivesse se recusado a fazer a minha tarefa, essa hora eu estaria sendo muito bem mimada no Spa, junto com a minha adorada mãe.
Antonieta: E ia pagar como? Se você quer tanto mimo e luxo, arrume um emprego e pague suas próprias despesas!
Julie: Tá doida? Tá gagá, é?
Miguel: Dona Antonieta, eu só aceitei fazer a tarefa com a Julie pra poder esperar a Any. A senhora sabe se ela vai demorar?
Antonieta: Ela foi só na venda pra mim, Miguel, já deve estar voltando.

Any: Não sabia que você viria, Miguel!
Miguel: Tudo bem. É que era caminho passar aqui, fui entregar umas peças pro meu pai.
Any: Desculpe as malcriações da Julie...
Miguel: Tudo bem, já tô acostumado! Meu irmão também não é nada fácil...

Miguel: Any, eu queria saber se você vai na excursão da escola amanhã.
Any: Eu vou sim. Você vai?
Miguel: Ah, eu vou sim. Então... Você topa dividir o banco no ônibus comigo?

Daí eu nem ouvi mais nada! Sabe aquele seu primeiro amor? O Miguel era mais do que isso! Era o meu príncipe encantado!
Ele era filho da Manuella. E, é claro, minha mãe abominava que eu ou a Julie sequer tivéssemos amizade com ele ou com o irmão dele, o Juan.

Any: Claro, tá combinado!

Eu sabia que tava pegando alguma coisa entre a gente. Mas o Miguel era tímido demais pra se declarar e eu também não tinha coragem de falar nada.
Mas eu sonhava toda noite com ele, com o dia em que a gente ficaria junto, e ele me pediria em namoro.
Nesse mesmo dia era capaz da minha mãe me esfolar viva, mas tudo bem... Valeria a pena!

Antonieta: Você gosta dele, né Any?
Any: Imagina, vó! Não deixa a mãe te ouvir falando essas coisas!
Antonieta: Você tem medo que ela proíba o namoro?
Any: Não tem namoro nenhum, não, vó...
Antonieta: Deixa de ser boba, menina! Se você gosta dele, não importa que ele não tem dinheiro, como a sua mãe fica resmungando. O importante é que tenha bom caráter, que te ame, te respeite, e que te faça feliz. Deixa que com a tua mãe eu me entendo.

Ai, seria um sonho!!! Mas até parece que a minha mãe deixaria isso barato!

Fiquei a noite toda pensando no que a minha vó me disse.
E isso me deu algumas ideias...